Fantasmas do Coração

Nós mudamos. Desde que nascemos, não paramos de mudar. Por quantas fases nós já passamos? Quantas coisas deixamos para trás? E dessas, quantas deixaram em nós sua marca? Esse texto foi baseado em um sonho que tive há muito tempo, e fala sobre os fantasmas do meu coração. Todos nós temos fantasmas no coração. Quais são os seus?

Dividi o texto em 5 partes. Se não quiser ou não puder ler todo de uma vez, basta memorizar em qual parou e depois voltar para a parte seguinte.

E eu gostaria de dedicar esse texto a toda a minha família e amigos de infância, que tornaram esse texto possível e esse coração cheio de fantasmas ;)

Espero que gostem.
Boa leitura.


Os Campos do Paraíso | Créditos: Gabryella Alves

I. “O Retorno”

Após tantos anos, ele voltou. Olhou a rua onde havia parado. Continuava igual a antes. Imediatamente, ele começou a andar. Enquanto andava, sua mente voltava à época que tantas vezes ele passou por ali. As casas continuavam como ele se lembrava, algumas folhas na rua voavam ao vento. Virou à esquerda, uma rua e o início de uma ladeira surgiram à sua frente. Ele sorriu. Estava tão perto. Continuou sua caminhada. Seus pensamentos o levavam à épocas atrás, seu coração batia rápido.

Passou ao lado de um salão e ouviu uma conversa, e parou para ouvir. Tempos atrás, ali havia sido bar, depois um salão de concerto de roupas, depois uma igreja evangélica. O quê seria agora? Ele se aproximou, mas não viu ninguém. Chegou mais próximo, mas parecia que estava vazio. Chegou na porta. Não havia ninguém ali. Então, ouviu uma gargalhada, praticamente ao seu lado. Assustado, ele recuou. Olhou em volta, mas não havia ninguém na rua. A conversa dentro do salão continuou. Novamente, ele chegou na porta e olhou. Estava vazio. Mas as vozes vinham de lá de dentro. Ele entrou, e ficou no centro daquele lugar. A conversa vinha de vozes de pessoas a sua volta, mas ele estava sozinho ali. Assustado, ele começou a sair daquele lugar. Quando chegou à porta, mais alguém lá de dentro riu.

Parado no meio da rua, seu coração estava disparado. Ainda ouvia as vozes lá dentro. Olhou por onde havia vindo. Não havia ninguém. Olhou o outro lado da rua. Também não havia ninguém. Pensando, ele tentou lembrar se havia visto alguém quando chegou, e de repente notou que não havia visto ninguém. Olhou para a ladeira que levava ao seu destino, e teve um mal pressentimento, teve medo de segui-la. De chegar naquele local que há tanto tempo havia deixado. Mas havia opção? Ele não poderia ficar ali, parado no meio da rua, sozinho. Voltou a andar em direção ao seu destino. Quando chegou ao início da ladeira, decidiu que antes, iria a outro lugar. Uma rua seguia à esquerda. Seguiu por ela. Após andar um pouco, entrou à direita, onde a rua levava a uma nova ladeira. Começou a subir por ela, mas logo virou novamente à esquerda. Aquela rua era estreita, e seguia até seu final desaparecer de vista. Seguiu por ela. Enquanto andava, tentava ouvir mais algo, mas não notou nada estranho. Ouvia sons de pessoas conversando, crianças brincavam… Então, seu coração começou a se acalmar, e seus pensamentos voltaram ao passado. Afinal, quantas vezes havia andado ali, seguido aquele mesmo caminho para ir conversar. No meio dos pensamentos, quase não notou quando chegou ao destino. Mas as portas estavam fechadas. Ele bateu na porta. Ninguém respondeu. Tentou de novo. Nada. Olhou dos dois lados da rua. Como as outras, não havia ninguém.

Imediatamente, voltou a andar. Não queria ficar parado ali. Queria chegar logo ao seu destino. Tomou o caminho de volta. Quando chegou novamente ao início da rua, virou à esquerda, e subiu a ladeira. Lá, seguiu à direita. Não havia mais ruas para percorrer. Bastava seguir em frente. Até o seu destino. Faziam anos que ele não andava por ali, mas poderia fechar os olhos, e seus pés o levariam. Mas ele não queria fechar os olhos. Não queria perder de rever um detalhe sequer. Olhou o céu. O Sol brilhava, e nuvens muito brancas vagavam pela imensidão azul.

E então, lá estava ele. Havia chegado. Voltado para casa.

II. “A Gaiola Dourada”

Ele bateu na porta sem chamar, pegaria todos de surpresa. Passaram-se alguns segundos, mas ninguém respondeu. Ele bateu na porta novamente e tentou ouvir, mas não havia nenhum som vindo da casa. Pela primeira vez, ele chamou. Passaram-se mais alguns segundos e, como ninguém apareceu, ele tentou abrir a porta. Não estava trancada, e ele entrou. Chamou novamente para não assustar seus avós, mas o silêncio permanecia o mesmo. A sala da casa continuava como sempre, dois sofás estavam perto de uma pequena estante com uma TV. Logo ao lado, ficava a porta para seu quarto. Ele entrou. Estava como no dia em que ele saiu. Seus avós deveriam ter mantido como ele havia deixado para lembrarem dele.

Com esse pensamento, a saudade dentro dele cresceu, em segundos se multiplicou várias vezes. Ele saiu apressado do quarto e chamou muito alto, foi até o outro quarto, mas lá também não havia ninguém, na cozinha também não. Ele chegou até a porta do muro e por uns segundos seu coração parou.

Lá estava uma criança exatamente igual a como ele havia sido, brincando como ele brincava tantos anos atrás. Mas não poderia ser ele. Afinal, ele havia crescido. Há muitos anos não era mais daquele tamanho, há muitos anos havia ido embora e só agora havia voltado. Então, seria um parente seu? Sobrinho, talvez? Ele abriu um largo sorriso, abriu a porta e saiu para o muro.

Tudo ali continuava exatamente como era a tantos anos atrás. Haviam muitas plantas que tapavam o Sol e faziam do muro um lugar quente mas agradável. Alguns vasos com algumas plantas pequenas estavam a um lado, e mais há frente, várias plantas maiores: laranjeira, caramboleiras e, ao fundo, uma grande gravioleira. O garoto brincava abaixado e sozinho. Ele deu alguns passos até onde o garoto estava, e chamou, mas ele não olhou. Chamou mais alto, mas ele parecia estar tão concentrado que parecia estar desconectado do mundo à sua volta. Ele foi se aproximando de onde ele brincava e foi notando algo estranho. O garoto parecia muito com como ele havia sido. Não apenas fisicamente, mas também na forma de brincar, de se mover… E a cada passo que ele dava, mais ele o achava parecido. Já muito próximo, ele chamou, mas o garoto nem olhou ou deu qualquer atenção. Ele ficou a apenas alguns passos observando aquela criança brincar exatamente como ele brincava. Então, o garoto se levantou.

Aquela criança não apenas brincava e se parecia com ele, ela era ele. Ele ficou olhando seu Eu criança andar sozinho por onde ele havia vindo, sem ao menos olhar para trás ou dar qualquer atenção a ele. Parecia querer voltar para dentro de casa, mas quando estava quase chegando aos vasos com as plantas, sumiu. Simplesmente desapareceu.

III. “Os Campos do Paraíso”

Seu coração parecia ter querido sair de uma vez do seu peito. Triste e assustado, ele saiu da casa e sem pensar começou a descer a rua. Logo as casas acabaram, e pequenas árvores começaram a surgir no caminho. E então, ele notou onde estava indo.

Ele andou por vários minutos. As árvores cresciam dos dois lados da estrada de terra. Ele olhava os detalhes, mas já não estava ansioso ou feliz por ter voltado. Tudo isso parecia ter dado lugar a uma grande tristeza que apertava seu coração. Passou por um riacho que cortava o caminho e subiu uma grande ladeira, parou, virou para trás e olhou em volta. O verde tomava conta de tudo, os pássaros cantavam entre as árvores. O barulho da água do riacho que ele havia passado ainda chegava aos seus ouvidos. Em vez de se sentir feliz com algo tão belo, seu coração apertou ainda mais. Fechou os olhos por um longo momento, e quando abriu continuou seu percurso. Andou mais vários minutos. Por fim, passou por uma velha porteira de madeira, e lá estava: o sítio dos seus bisavós.

Ainda andando, ele não deixou de sentir um pouco de felicidade por rever um lugar tão bonito e querido. O caminho de terra seguia estreito. Ele andou mais um pouco, e viu um grande umbuzeiro ao lado do caminho e, do outro lado e um pouco mais à frente, uma velha casa. Ele fechou os olhos e ficou apenas ouvindo os sons por um minuto. O vento soprava as folhas das árvores em volta. Ele olhou aquele velho umbuzeiro e notou algo. Todos os galhos tinham nomes escritos. Deu um sorriso e se aproximou. Sua família costumava colocar ali o nome dos seus integrantes. Havia nomes em galhos mais baixos, alguns em galhos mais altos. Alguns haviam sido feitos do chão, outros alguém devia ter subido no umbuzeiro para colocar seu nome, ou o nome de um filho, ou de um marido ou esposa. Haveria ali nomes de parentes que ele ainda não havia conhecido? Achou o seu em um galho baixo do umbuzeiro. Lembrava perfeitamente o dia em que sua avó havia o colocado ali. Era manhã, ele criança e ela com uma faca de mesa riscou aquele galho com seu nome. Enquanto ela riscava, seu bisavô havia passado por aquele mesmo caminho que ele acabou de pisar para ir a uma lavoura que ficava logo ao lado do umbuzeiro. Ele olhou na direção.

O mato baixo tomava conta da terra que naquela época estava sendo preparada para o plantio. Novamente, um sorriso apareceu no seu rosto. Seus olhos seguiram o caminho como se fosse naquele dia, como se sua avó estivesse ali colocando seu nome e seu bisavô estivesse passando naquele momento. Ele sorriu ainda mais e olhou para o lugar onde ele estava naquele dia. Mas a visão do seu Eu brincando na sua casa veio à mente, e ele entristeceu-se.

Olhou para a velha casa do outro lado. As portas de madeira estavam abertas. Lentamente, ele começou a andar para lá. Dois degraus desgastados levavam à porta da cozinha, ele subiu e olhou para dentro. O fogo estava alto no fogão de lenha ao lado da porta, e o aroma da comida sendo preparada espalhava-se pelo ambiente. Ele chamou, mas ninguém respondeu. Olhou para fora, mas não havia ninguém perto. Ansioso, entrou.

Ele passou da cozinha direto para o próximo cômodo. Lá, havia uma janela aberta e ao lado uma grande mesa com bancos de madeira, e uma pilha de cartas de um baralho em cima. Ele sentiu um grande alívio e um grande sorriso apareceu no seu rosto. Havia gente ali, pessoas conhecidas, pessoas da sua família. Percorreu a mesa e olhou pela janela. Não viu ninguém. Onde estavam? Desapontado mas sem perder as esperanças de encontrar alguém, ele chamou alto, mas ninguém respondeu. Sua voz se afastou pelas terras misturando-se com o som do vento nas folhas das árvores. Ansioso, foi até a sala da casa.

Dois sofás e alguns bancos de madeira estavam lá. Havia outra janela, que dava de frente para o caminho pelo qual ele havia vindo. Mas havia algo diferente nessa janela. Ela estava coberta por pequenas coisas escritas a lápis. Ele já sabia o que era. Assim como o umbuzeiro, sua família também colocava ali o nome dos seus parentes. Ele havia esquecido de olhar no umbuzeiro se havia nomes de alguém que ele ainda não conhecia. Chegou próximo, e começou a ler. Imediatamente, reconheceu a letra de várias pessoas. Como era bom rever esses mínimos detalhes. Alguns nomes estavam muito apagados e difíceis de ler, devido ao tempo que fazia que haviam sido escritos.

Ele passou vários minutos lendo, procurando novos nomes, mas não achou nenhum. Por fim, desistiu de procurar. Afastou-se e foi até a porta da frente. Um pequeno e velho armazém ficava ao lado, e atrás e distante, um gigantesco angico tomava conta da paisagem. Ele passou vários minutos olhando naquela direção. O único som que chegava aos seus ouvidos era o do vento balançando as folhas das árvores. Por fim, decidiu voltar, iria até as jabuticabeiras ver se eles estavam lá. De volta ao cômodo anterior, tomou um grande susto, e seu coração disparou.

As cartas do baralho estavam distribuídas na mesa. Ele ficou parado olhando as cartas imóveis sobre a mesa. Elas estavam empilhadas antes. Sabia que estavam. Ou havia visto errado? Não, ele não poderia ter se enganado. Alguém teria distribuído elas? Mas como, sem ver ele na sala ou sem ele ouvir? Novamente, ele chamou, mas ninguém respondeu. Saiu apressado, passou pela cozinha, saiu da casa e começou a andar. Iria às jabuticabeiras, eles estariam lá, tinham que está. As jabuticabeiras em geral dão safra ao final do ano, após as primeiras chuvas do verão. A primeira jabuticabeira já havia sido colhida. Folhas verdes estavam espalhadas pelo chão e apenas algumas jabuticabas restavam nos galhos. Ele saiu andando de uma em uma jabuticabeira esperando encontrar seus parentes, mas a cada uma que passava sua esperança diminuía. Eles deviam ter ido a outro lugar. Por fim, restava apenas uma.

Havia algo especial nela. Quando criança, muitas vezes ele havia ido lá nos dias de colheita e ficava olhando enquanto os outros colhiam. Ela era grande, e havia um grande tronco no chão que ele costumava ficar sentado. O vento havia diminuído. O único som vinha dos seus passos amassando as folhas secas no chão. Mas quando começou a se aproximar, ele começou a ouvir algo mais. Alguém estava chorando.

Novamente, seu coração voltou a bater rápido. Ele continuou andando para lá, mas, de repente, parou. Havia algo muito familiar naquele choro. Ele ficou parado por uns minutos ouvindo e, enquanto ouvia, começou a ficar ainda mais nervoso. Seu coração batia muito acelerado e ele começou a suar frio. Não poderia ser o que ele pensava. Enquanto ouvia, ele fechou os olhos e ficou ouvindo por um momento. Aquele choro, fora o vento leve, era o único som que chegava aos seus ouvidos. Ele abriu os olhos e voltou a andar para lá. Passou por baixo das folhas e dos galhos baixos da jabuticabeira, e lá estava.

Seu Eu criança estava sentado em cima de um grosso tronco seco de um angico derrubado, suas pernas em cima do tronco e os olhos cobertos pelas mãos e joelhos. Ele não precisava ir mais próximo para ver porque ele chorava. Não precisava nem ver, pois aquele era ele. Ou melhor, foi ele. No entanto, deu alguns passos para se aproximar, e viu o motivo do choro. As pernas do garoto estavam com grandes caroços e manchas vermelhas, resultado de formigas e urtigas que haviam ali. Afinal, quantas vezes ele havia ido ali para ver aquele lugar por achar ele bonito, mas havia chorado ou se machucado por causas das armadilhas de lá. Ele ficou observando aquele garoto que ele havia sido tantos anos atrás por vários minutos. Como havia mudado, crescido. No entanto, ele sabia, continuava sendo praticamente o mesmo. Com o tempo, o choro foi cessando, e por fim o garoto levantou o rosto, ainda molhado pelas lágrimas. Começou a observar a jabuticabeira carregada de jabuticabas, e então, sumiu. Ele ficou olhando o lugar onde seu Eu criança estava e então, lembrou: onde estava sua família? Ter aquele pensamento foi como sentir uma espada atravessando seu coração. Ele deu as costas àquele lugar e saiu andando. Para onde iria? Ele não sabia.

IV. “O Voo Livre”

O Sol do fim da tarde ainda brilhava alto no céu. Andando sozinho, ele não via mais por onde andava. Seus pensamentos estavam distantes. Havia muitos sentimentos em seu coração: saudades da sua família, culpa por ter ido embora, tristeza por não ter reencontrado ninguém. Sem perceber, chegou a um trecho iluminado pelo Sol, e os raios iluminaram seu rosto. Devido à claridade, ele piscou os olhos. De repente, se deu conta de onde estava. Estava quase chegando de volta à cidade. Ele olhou em volta. Os raios de Sol brilhavam entre as árvores. Então, olhou para o céu azul, e viu algo. Uma pipa muito alta voava no céu. Seu coração apertou ainda mais. Sem pensar, começou a andar em direção a ela. As árvores acabaram, e o caminho começou a ficar íngreme. Os raios mornos do Sol lhe acariciavam, e o vento soprava e balançava seus cabelos. No alto, ele viu.

Um garoto segurava a linha da pipa e olhava ela no alto. Ele se aproximou, mantendo os olhos no alto. A pipa estava tão alta que quase não se via suas cores. Sem olhar para o garoto, olhou em volta. As ruínas de uma antiga lavanderia ficavam ao lado de uma pequena lagoa. Há sua frente, o verde se estendia até o horizonte, banhado pelos raios de Sol. A pipa se movia no céu de acordo com o vento. Ao longe, pássaros cantavam. Ele ficou olhando por muito tempo. O Sol começou a ficar cada vez mais baixo. Quando estava quase se pondo, ele criou coragem e olhou o garoto. Seu Eu criança estava sorrindo. Olhava a pipa voar no alto, seus olhos brilhavam, seu coração voando tão alto quanto aquela pipa. Então, segurou a linha com firmeza, e com a outra mão, cortou a linha. A pipa estremeceu e começou a se afastar. Enquanto caía, o vento ia levando-a para cada vez mais longe. Os dois ficaram olhando ela se afastar no horizonte. Por fim, ela ficou cada vez mais baixa, até que sumiu em algum lugar no meio das árvores. Novamente, ele olhou para o garoto. Ele ainda olhava o lugar onde a pipa havia caído. Por fim, se virou e começou a andar, e após alguns passos, sumiu.

Ele sentou de frente para o horizonte. Os últimos raios do Sol passavam pelas montanhas, enquanto os pássaros cantavam, preparando-se para outra noite. Por fim, o Sol cobriu-se totalmente, os pássaros pararam de cantar, e a escuridão começou a tomar conta de tudo. Mas ele não se moveu. Apenas fechou os olhos, e os segundos passaram-se, e tornaram-se minutos, e os minutos tornaram-se horas. Mas mesmo assim, ele não se moveu.

V. “Os Fantasmas da Festa”

Ao longe, começou a tocar uma música. Ele abriu os olhos, mas a escuridão era total. Ficou ouvindo. Após alguns minutos, a música terminou, mas outra começou a tocar. Então, ele lembrou-se que havia sentado olhando para o horizonte, que a cidade e as casas ficavam para o outro lado. Virou-se para a direção onde ficava a cidade. Viu, ao longe, a torre iluminada de uma igreja. Então, ele lembrou. Era véspera de Natal.

Ele não queria ver mais nada. Pretendia ficar ali para sempre. Novamente, a música acabou e foi substituída por outra. Então, algo começou a lhe dizer que devia ir à cidade. Ele pensou por um momento, e enquanto a música tocava, decidiu ir. O local onde ele estava era íngreme e estava completamente escuro. Mas ele sabia que conseguiria ir. Fechou os olhos, e começou a andar. O caminho era irregular, mas ele não teve nenhuma dificuldade para segui-lo. Após algum tempo, percebeu que já estava chegando nas primeiras casas da cidade, mas manteve os olhos fechados. Sabia que ainda não era hora de abri-los. Após mais alguns minutos de caminhada, soube que estava na hora. Ele parou de andar e abriu os olhos.

Encontrava-se na mesma rua na qual ele havia chegado naquela manhã. Os postes que iluminavam a rua estavam enfeitados com luzes que formavam árvores de Natal. Ele recomeçou a andar. As casas também estavam enfeitadas. Algumas tinham árvores de Natal com luzes em volta, outras tinham suas fachadas decoradas. Enquanto andava, ele refletia sobre tudo o que havia acontecido naquele dia. A música que vinha do centro da cidade tornava-se cada vez mais alta a medida que ele se aproximava. E então, lá estava: o centro da cidade estava todo enfeitado. Pequenas luzes amarelas cobriam a igreja e rodeavam as árvores da praça principal. Junto com a música, conversas e risos chegavam aos seus ouvidos. Ele olhou em volta. Não havia ninguém na festa.

Ele percorreu a frente da grande igreja que ficava de frente para a praça, e ouviu vozes de adolescentes conversando. Já do outro lado da rua, pequenas bancas de lanches reuniam vozes de pessoas que comiam e conversavam, o aroma dos alimentos espalhava-se pela rua. Novamente atravessou a rua, e chegou ao início da praça. Ouviu as vozes de pessoas sentadas nos bancos. Suplicando para ver alguém, fechou os olhos, e após um minuto reabriu-os. A rua continuava vazia. Seguiu pelo centro da praça. Logo à frente, havia uma grande árvore de Natal formada por pequenas luzes coloridas. Vozes de crianças que brincavam à volta dela vinham de lá. Uma rua cortava a praça e levava ao palco de onde vinha a música. As luzes dos refletores percorriam o palco, e algumas vezes escapavam e apontavam para o céu. Ele olhou para o céu. Estava nublado. Continuou andando.

Cadeiras em volta de mesas estavam dispostas na rua até perto do palco. Enquanto atravessava a rua, ouviu vozes baixas vindas delas. Esperançoso, olhou, mas elas também estavam vazias. Já ao lado da outra praça, começavam os brinquedos do parque para as crianças. O primeiro, os carros bate-bate. Os carros iam e vinham, e colidiam uns com os outros. Ninguém os guiavam. E assim, ele seguiu brinquedo pós brinquedo, ouvindo vozes excitadas e alegres de crianças. Uma roda gigante rodava sem que ninguém estivesse sentado em suas cadeiras. A rua a seguir estava vazia, ele havia percorrido toda a festa. Olhou para trás. Era uma visão verdadeiramente bonita. Faltava apenas uma coisa.

Sem olhar para a frente, ele começou a andar de volta. Então, passou na frente de um pequeno estabelecimento, e algo chamou sua atenção. Imediatamente, ele soube o que era. Sem olhar, entrou. Quando já estava lá dentro, sentou em um banco e olhou ao redor. Um garoto olhava atentamente a tela de uma televisão, seus dedos apertando botões em uma mesa. Estava completamente absorto naquilo. Começou a chover lá fora. E então, ele entendeu. Nada ali existia mais.

A verdade estava diante dele desde que chegou naquela manhã, mas ele não queria vê-la. Uma tristeza muito grande apertou seu coração. Se levantou, e começou a andar para fora daquele lugar. Quando saiu, a chuva fria lhe acariciou. Seus olhos percorreram aquela cena. A chuva caia e o chão refletia o brilho das luzes que enfeitavam a rua. Ele fechou os olhos, e lágrimas quentes desceram de seus olhos e escorreram por seu rosto, misturando-se com a chuva. Finalmente, ele aceitou.

Passou vários minutos com os olhos fechados, as grossas gotas de chuva batendo no seu corpo. As lágrimas que há tanto tempo ele havia deixado para trás agora desciam pelo seu rosto de forma incessante. Após vários minutos, finalmente ele abriu os olhos e a praça e as luzes borradas pelas lágrimas começaram a entrar em foco. Muita coisa havia mudado.

Pessoas caminhavam apressadas com guarda-chuva em mãos. Muitas das árvores da praça já não estavam mais lá, enquanto as que restavam estavam maiores. Os brinquedos do parque também haviam mudado, e crianças brincavam neles sem se preocupar com a chuva enquanto seus pais esperavam.

O mundo que ele queria rever já não existia mais. O que ele viu naquele dia não passava de fantasmas do seu coração.

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